UM BLOG DEDICADO AO SURREALISMO DA MINHA MENTE. COM POEMAS, SONHOS E TEXTOS.

segunda-feira, 28 de março de 2011

A torta de morango


Você chega numa doceria, naquela que você sempre vai e sempre admira seu doce preferido e sabe que é o melhor de todos, a torta de morango! Então se debruça no balcão como uma criança e pede a sua torta de morango.

- Ah! Essa você não pode comer, está reservada. Mas tem a de limão.
- Ahhh...

Fica triste e que coisa! Ainda quer comer um doce, nem que seja a torta de limão, ligeiramente azeda. Pede um pedaço, e come imaginando a de morango, quase que sente o sabor, mas logo vem aquele azedinho e te dá arrepios.

- Uhhhhh...

Ainda queria a de morango, a vistosa e apetitosa torta de morango. Quem sabe outro dia, quando passar pela doceria, ela não vai estar lá, esperando por você?

Tortas de morango, tabuleiros de xadrez. Às vezes as imagens que formam em minha cabeça lembram algo como 'Alice no País das Maravilhas'. Porém no meu sem tantas maravilhas.

- A rainha! - sim, ela passa por mim de sopetão. Com a bendita torta nas mãos. Devo ir atrás dela?
- Espere!
- Diga querida! - com o sorriso mais doce do mundo, ela é enorme e se curva um pouco para me ouvir. A torta não é mais a mesma, a de limão.

A figura vai encolhendo e fica um pouco maior que eu, suas ligas vermelhas aparentes, com os dedos sendo saboreados, o glacê e o creme azedo.

- Quer provar, doçura?

Não é isso o que eu quero. Morangos não são para mim.
Eles sempre me deixam com feridas. Strawberry gashes all over, all over.

Um cavalheiro, entra na doceria. Eu acordo de meus devaneios. Ele pede uma torta de morango para a moça. Ela entra e em instantes volta com a torta.

- Mas...
- Ah sim, é uma reserva.
- Ah tá...

- Mocinha, você gosta de torta de morango?
- Sim, muito! Mas sempre me fazem mal depois.
- Sério? Que coisa. Pois essa eu pretendia comer aqui, acompanhado de uma dama. Que não sei por qual motivo, não apareceu. Me dá essa honra?
- Oh, nem sei o que dizer.

Puxou uma cadeira e me deixou comer o primeiro pedaço. Ele me fitava e eu desacreditando que estivesse comendo a torta que eu mais amo. Com certeza ela me fará algum mal depois.

- Gulosa! - e sorri delicadamente.
- Me desculpe, eu ansiava tanto por ela... Perdi meus modos.
- Fica linda comendo assim.

Ah, eu coro e fico da cor da decoração da loja, vermelinha vermelinha!
Então ele também começa a saboreá-la. Esboçando sorrisos convidativos. Era um deleite toda aquela cerimônia. Até que acabamos com o doce.

- Muito, muito obrigada mesmo! Você tornou meu dia feliz!
- Eu sempre venho aqui. Coincidência nunca termos nos encontrado. Você é uma doce criança.
- Obrigada senhor.
- Não me chame assim, não sou tão mais velho.
- E eu nem sou tão pequenina assim.

Sorriu e fechou a caixa de forma rápida, fazendo barulho e me encarando:
- E então? Ainda se sente bem? - devorava-me com os olhos.
- Sim... sim... sono...

Assim fui levando, assim fui levada. Essas tortas deliciosas sempre me dão um prazer indescritível e depois de tudo soam como uma droga viciante e que destrói aos poucos.

- Sua cartola... somente ela... o quê? Ahhhn...

Abusa, lambuza e se destrói, bem aqui, dentro de mim.

domingo, 13 de março de 2011

Eu

Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada... a dolorida...

Sombra de névoa tênue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...

Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber por quê...

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!
Florbela Espanca



Poetisa simbolista, Florbela Espanca nasceu em 8 de dezembro de 1894. Poetisa portuguesa, vida plena e tumultuosa, inquieta e cheia de sofrimentos íntimos que soube transformar em poesia da mais alta qualidade, carregada de erotização , feminilidade e panteísmo.

Escreveu poesia, contos, um diário e epístolas; traduziu vários romances e colaborou ao longo da sua vida em revistas e jornais de diversa índole, Florbela Espanca antes de tudo é poetisa.É à sua poesia, quase sempre em forma de, que ela deve a fama e o reconhecimento. A temática abordada é principalmente amorosa. O que preocupa mais a autora é o amor e os ingredientes que romanticamente lhe são inerentes: solidão, tristeza, saudade, sedução, desejo e morte.

Sofreu as consequências de um aborto involuntário, que lhe teria infectado os ovários e os pulmões. Repousou em Quelfes (Olhão), onde apresentou os primeiros sinais sérios de neurose.

Tentou o suicídio por duas vezes mais em Outubro e Novembro de 1930, na véspera da publicação da sua obra-prima, Charneca em Flor. Após o diagnóstico de um edema pulmonar, a poetisa perdeu o resto da vontade de viver. Não resistiu à terceira tentativa do suicídio. Faleceu em Matosinhos, no dia do seu 36º aniversário, a 8 de Dezembro de 1930. A causa da morte foi a sobredose de barbitúricos.
A poetisa teria deixado uma carta confidencial com as suas últimas disposições, entre elas, o pedido de colocar no seu caixão os restos do avião pilotado por Apeles (seu irmão falecido) na hora do acidente. O corpo dela jaz, desde 17 de Maio de 1964, no cemitério de Vila Viçosa, a sua terra natal.
Leia-se a quadra desse "admirável soneto que é o seu voo quebrado e que principia assim":
Não tenhas medo, não! Tranquilamente,
Como adormece a noite pelo outono,
Fecha os olhos, simples, docemente,
Como à tarde uma pomba que tem sono...

Mais em: pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca
Me identifiquei logo que li alguns de seus poemas, numa coletânea de poemas simbolistas: O Simbolismo de A. Soares Amora. Sobre poetas simbolistas portugueses, outro que me chamou atenção foi Teixeira de Pascoais.

Um beduíno



Banido ele foi
Deixado para trás

Arrastado pelo deserto
Dilacerado estava

Perdido e imerso em seus pesares

Como ninguém pôde enxergar?
Foi coberto pela tempestade

Jazia morto-vivo debaixo de toda a areia
Que era leve perto de suas mágoas

Muitas mágoas carregava

Ainda assim ansiava viver
Mais do que tudo

Esticava a mão por debaixo daquela camada fria
Aquela onde o sol não tocava
Fria demais

Até que sentiu um calor nos dedos
Atingira a superfície
O sol

Aquecia sua vontade de viver
Foi lutando e lutando

Ao ver seu bando ao longe
Ao ver o sol
Seu camelo caído

Cuspiu toda a areia que engolira
Respirou ofegante

Olhou ao redor
Somente o nada
O deserto
Sua cidade jazia em poeira
Em ruínas

Não era sua culpa
Ah, não era

Tudo o que pediu foi ser ouvido
Foi amar a pessoa errada
Tentar revolucionar

E estava alí, semi-morto
Seu camelo, seu amigo
Caído

Arrastou-se até o animal
Seus olhos umideceram
Seu único amigo
Mais semi-morto que ele

Soltava gemidos
E uma bala no peito

"Malditos!
Malditos os amigos que cultivei!
Pragas!
Pragas!"

E chorava no peito de seu único amigo
Abraçava-o
E sem mais forças o animal foi se entregando
Pouco a pouco

Numa sinfonia agonizante
Terrivelmente iluminada pela estrela-mor

A pistola, jogada a uns metro a frente
Descendo uma duna

Ela reluzia
E ansiava por ser tocada
Como uma flauta encantadora
Que livrará a dor
Que levará a dura realidade para longe

O camelo apertava as pálpebras
E o homem se arrastava ferido até a arma
E sua alma agonizava, num canto agônico sem fim

Pegou-a
Ainda restava uma bala
E seu amigo queria descansar
Lhe implorava com os olhos chorosos

Não, não teria tal coragem
Antes tiraria a própria vida
Mas a luz do sol o aquecia de uma forma divina
Mesmo sem ter para onde ir
Sem ter pelo que lutar
Nem condições mínimas para viver

Ah ele queria
Queria tentar

Mas seu único amigo estava partindo
Estava sofrendo de forma cruel

Então maldizia a todos
Maldizia seus amigos traidores

Voltou com a pistola
Fitou-a
Fitou o camelo

Pensou em tudo o que já tinham passado juntos
Pensou na vida adiante o que seria
Estava pensativo
Afundando-se cada vez mais em sua alma e na dor alheia

Eis que se ouve um zumbido
E uma nova tempestade de areia

Um avião
Um monomotor
Uma pessoa gritando e apontando

"Ei amigo!
estamos descendo para ajudar"

Despertou mais com os grunhidos do camelo
Do que com o zumbido, ele gemia
Ele suplicava

O avião baixava e um homem lhe estendia as mãos
"Vamos!" e jogava uma corda
"Deixe esse bicho aí ele vai morrer mesmo"

Então encarou o homem contra o sol
Quase se cegando

E diz:
"Sim, eu também"
Abraça a cabeça do camelo
E dispara

Somente um estrondo
Somente um imenso ruído
E um imenso silêncio

Silenciou
Tudo parou
Naquele instante as duas almas já se separavam
Do pedaço de carne semi-podre que jazia alí

Um único amigo
Foi o que lhe restou
Foi o que levou consigo
Um único