A Sala fica vazia
Mas eu ainda estou lá
Antes do acontecido
Nada me prendia
Hoje me encontro no vazio a esperar
O mundo corrido me deixou mais sossegada
Mas ainda não consigo deitar e dormir
De noite surge tudo o que não me passou durante o dia
Aquela sala continua vazia...
E seus móveis continuam os mesmos
A penumbra é a mesma
As coisas andam sem cor lá fora
Será que drenaram as cores da vida?
Não me incomodo, pois daqui não sairei
Estou a esperar...
Já faz tanto tempo
Nem sei precisar quanto
Talvez alguns anos
A sala está fria
Com suas paredes verdes
Com seu piso de madeira escura
Com a lareira inutilizada
Pela janela se vê a neblina
E nem estamos no inverno
Talvez só queira avisar
Que os sonhos foram dissolvidos
O teto está tão velho
Cairia sobre minha cabeça
O relógio está parado
E a cortina nem se movimenta
Se ouve barulho de carro
Tão velho quanto essa casa
Gente sai e gente entra pelas casas
Mas ninguém se cumprimenta
Ainda espero...
Mesmo que pela eternidade
Mantendo a castidade da minha palavra
Vou esperar
Na sala escura e mofada
No tapete gasto
Ao pé da mesa roída
Olhando a luz fraca do abajur
Barulho na escada
Gente chegando
Não...
Era o gato entrando pela portinhola
Do chão se vê o teto
Suas molduras
A tinta gasta do batente das portas
As janelas fechadas
Com a exceção de uma
A única que mesmo daqui vejo o luar
Nem que seja uma míngua de lua
O brilho chega até mim
E ilumina meus cabelos esparramados
Meu corpo largado
Torcido para a direção da porta
O silêncio é ruidoso
Nessa calada atmosfera
Tudo é tão mudo
Nem sequer um miado
Eu disse
Vou esperando
E observando
Posso narrar tudo o que vejo
Durante mais 30 anos
E ainda terei mais o que narrar
Cada detalhe me chama atenção
Um filete de ouro no rodapé
Um veio de madeira em forma curva
Um arranhão no pé da poltrona
Um vidro trincado da cristaleira
Minhas botas jogadas perto da porta
Minha bolsa em cima da mesa de centro
Um livro embaixo do sofá
Um gato a me olhar
Um Jesus me estendendo as mãos
Um outro quadro com senhoras pintadas
O papel de parede com desenho de flor de lis
O velho baú ao canto da sala
As cadeiras com o estofado desfiado
As janelas escuras com o verniz descascado
O vidro embaçado, a lua a me olhar
Já está na hora de aquecer o coração dessa velha casa
Tentarei acender a lareira
Com meu isqueiro e as folhas do diário
Que não servem mais para nada
Além de lembrar os fatos não ocorridos
E vou destacando as paginas
A festa que não aconteceu
O encontro que não vingou
O presente que não chegou
A música que não ouvi
O crepúsculo que não presenciei
O horizonte que não busquei
A poesia que não escrevi
A carta que não mandei
O livro que não li
O rapaz que não amei
A dama que não fui
O olhar que não deixei
A cama que não arrumei
O juízo que não me apareceu
O calor que não resfriei
A nudez que não pedi
Foi o único dos não ocorridos que fizeram menção de um fato
O resto foi ensaio
E não saiu do papel
E se agora sai
Vai para o fogo
Para aquecer meu corpo
Para que tenha força para lutar pelo que ainda lhe resta
O que ainda está por vir
Que não ficará na página de um caderno qualquer de anotações
Fim do Primeiro Capítulo
Bi Manson